É uma prosa infeliz que contrasta com a minha felicidade em saber que temos alguém como o grande Rui Miguel Abreu para responder à letra aquilo que tinha que ser respondido.
Cito, com a devida vénia, e em jeito de agradecimento Rui Miguel Abreu no seu excelente blog:
Em resposta à crónica «O ‘hip hop’ também mata» de Alberto Gonçalves publicada no DN
Quem no seu perfeito juízo daria emprego a Alberto Gonçalves? A pergunta pode parecer despropositada, sobretudo para quem, como eu, não fazia sequer a mais pequena ideia da sua existência. Esse estado de graça foi, no entanto, profundamente abalado quando há menos de uma hora uma pessoa, igualmente desconhecida, mas certamente preocupada, teve o cuidado de me fazer chegar ao conhecimento a pateta crónica «O ‘hip hop’ também mata» assinada, precisamente, pelo senhor Alberto Gonçalves. O que fará tal senhor na companhia de tão ilustres cronistas quanto Adriano Moreira, António Perez Metelo ou António Vitorino desconheço. Provavelmente, e a julgar pelo já referido texto, não terá obtido o cargo das mãos de alguém «no seu perfeito juízo».
O conservadorismo de direita bacoco e retrógado é indisfarçado nas entrelinhas desta crónica, como nas de outras que tive o cuidado de ir procurar – afinal de contas o problema que revela ter com o hip hop não é muito distante do que expõe em relação a quem ousa fugir a uma norma imaginária de decência: como Daniel Day Lewis que usou argolas nos Óscares ou a premiada na categoria de Melhor Argumento que «possuía tantas tatuagens quanto os ferimentos de guerra de John McCain» (tiradas de elevadíssima moral a que tive acesso por via de uma reacção do blogue Arcebispo de Cantuária a uma crónica de Alberto Gonçalves publicada na revista Sábado – e parecem ser abundantes os empregadores com baixo grau de «perfeito juízo»…).
Na crónica «O ‘hip hop’ também mata», Alberto Gonçalves começa por dissecar as reacções à mediatizada morte de Nuno Rodrigues, o MC que adoptou o nome Snake, para depois declarar, com a propriedade omnisciente de quem se coloca num plano superior, que se há quem defenda que essa morte se deve a um estereótipo a verdade também é que «a responsabilidade pelo estereótipo cabe inteirinha ao sr. Rodrigues». Eu não conhecia o senhor Nuno Rodrigues e pouco conhecia do MC Snake. No entanto nunca ousaria presumir conhecer quais as escolhas que tanto o homem como o MC fizeram em vida. Certezas tenho em relação à sua condição: sei que não escolheu a cor de pele com que nasceu, nem o bairro em que cresceu ou as oportunidades e obstáculos com que se deparou. Não sei sequer se terá escolhido o hip hop ou se terá sido o hip hop a escolhê-lo a ele. Sei é que se por acaso Snake se encaixava em algum estereótipo isso não terá certamente sido resultado de uma escolha. Ninguém escolhe ser uma casualidade, uma estatística ou um número. E quem escolhe o hip hop almeja sempre a superação e a sobrevivência – ou seja, a fuga ao estereótipo, a recusa de ser uma mera entrada num catálogo estatístico qualquer.
O senhor Alberto Gonçalves dedica depois boa parte da sua crónica a debitar uma série de lugares comuns sobre o hip hop. Que é primário, que não é música, que é confrontacional, escreve. «É, vá lá, um estilo de vida, traduzido à superfície no vestuário ridículo e nos gestos animalescos». A foto disponível no cabeçalho da coluna «Dias Contados» (vale a pena explorar os arquivos desta coluna num exercício que é mais ao menos o equivalente a um mergulho nos mares do Japão, tal a quantidade de pérolas que se encontram), onde se publicou esta crónica, é ínfima, mas ainda assim revela que o senhor Alberto Gonçalves pertence aquela classe-cinzenta-do-blazer-azul-escuro-usado-sobre-camisa-azul-um-pouco-mais-claro-sem-gravata-que-um-homem- não-tem-que-sofrer-todos-os-dias. Vestuário uniforme ridículo, claro, nesse degradé tão mortiço que, afinal de contas, só reflecte uma visão mesquinha da vida, animalesca de tão predadora, de tão selvaticamente empedernida.
O senhor Gonçalves prossegue depois com o seu exercício de ódio, apontando as suas farpas às letras, num toureio cego: «As letras, que certa “inteligência” considera “poesia das ruas”», escreve, «são, além de analfabetas, manifestações de rancor social. Por norma, são também glorificações do crime e panfletos misóginos». O retrato do senhor Gonçalves contido nestas linhas é tão claro que a tentação de as deixar sem resposta é grande. Duvido sinceramente que tenha ouvido todo o hip hop, única forma de justificar tamanha acusação. Esta imagem, formada à pressa depois de visionar meia dúzia de clips no YouTube, é no entanto clara na forma como realça os medos primários e injustificados que parecem existir no íntimo do senhor Gonçalves.
Segue-se um extraordinário parágrafo onde Alberto Gonçalves inventa uma nova genealogia para o hip hop, «braço musical tardio do black power», afirma. Explica o senhor que a «”identidade negra” somente se define contra o “sistema”, numa postura de desafio e fúria que a “inteligência” julga legitimada por uma suposta opressão». Cada uma destas “preciosidades” mereceria em si uma longa refutação, mas optando pela mesma estratégia telegráfica e sabichona do senhor Gonçalves, permito-me apenas dizer que o Black Power influenciou muito mais uma senhora como Nina Simone, que imagino que faça parte da sua colecção politicamente correcta de cds (deixe-me adivinhar, além de um best of com o menos bom de Nina Simone terá o quê? Um ou outro Dylan para impressionar amigos de esquerda, Rui Veloso, música clássica genérica, ópera para justificar a sobranceria musical, um Chico Buarque que secretamente não compreende mas que acha que lhe fica bem e que mais?), do que os pioneiros Afrika Bambaataa e Grandmaster Flash (nomes ridículos, já sei…) que em meados dos anos 70 estavam muito mais preocupados em fazer a festa do que a revolução. E depois, claro, vem o exemplo Uncle Tom do Louis Armstrong, o preto que se portava bem e até cantava a plenos pulmões como o mundo era bonito, coisa que Rosa Parks não percebia lá muito bem.
O bem informado senhor Gonçalves diz depois que o hip hop é uma invenção da indústria discográfica e televisiva, coisa difícil de compreender quando os livros de história nos revelam que as editoras demoraram a acordar para esta força cultural e que a televisão – a MTV – só depois de esgotar o apelo das cabeleiras carregadas de laca do hair metal de Los Angeles é que decidiu explorar as avenidas de Nova Iorque, já os anos 90 iam bem lançados. Segue-se a colocação das coisas em perspectiva usando uma ideia de contrastes que opõe literatura (qual? a de Margarida Rebelo Pinto?) à “poesia das ruas” (as aspas são do senhor Gonçalves, pois claro), que opõe música ao ruído (qual? o de Stockhausen?), educação (qual? a das escolas degradadas, mal equipadas?) à agressividade… Bocejo.
A estocada final na tentativa de diminuição do hip hop conduzida por Alberto Gonçalves chega com a procura de legitimação das suas opiniões extremadas junto de dois (Uncle) Thomas – Sowell e McWhorther – vozes dessa rara espécie de negros republicanos e conservadores que se pudessem usavam chapéus de cowboy o tempo todo e acompanhavam as digressões inteiras de Garth Brooks. E depois vem a citação de Stanley Crouch sobre 50 Cent que me forneceu o mote para o arranque desta resposta: «quem no seu perfeito juízo daria um bom emprego a 50 Cent?». Num parêntesis, Alberto Gonçalves tem o cuidado de referir que 50 é «uma das vedetas do género que ainda não tiveram morte violenta» porque, como sabemos todos, no rock toda a gente se reforma e morre de velho. Mas talvez isso só não tenha acontecido por 50 ainda não se ter encontrado com o próprio Stanley Crouch, crítico e historiador conhecido por esmurrar quem dele discorda. E, claro, por ser um defensor desse outro elevadíssimo e progressivo negro que é Wynton Marsalis, homem que acha que o jazz pertence aos museus e que devia ser música de reportório onde esses tipos modernos que fazem dos trompetes e saxofones fontes inesgotáveis de barulho não deveriam ter lugar.
Face a isto, temo até em imaginar como terão sido as conversas de café do senhor Alberto Gonçalves por altura do arrastão, esse outro fenómeno de estereótipos em corrida livre pelas praias alvas da imaginação de outros Gonçalves desta vida. Será que não percebe, senhor Alberto Gonçalves, que o estereótipo é o que tem à sua frente, no espelho?
Rui Miguel Abreu