Não resisto a reproduzir o texto que Miguel Esteves Cardoso assinou para o Expresso sobre o filme da vida de Ian Curtis, Control:
A Mania da Verdade
É claro que não consigo ver Control como um filme. O tempo que o filme recria foi o meu também; os Joy Division eram os músicos de que eu mais gostava; eu tinha a mesma idade que eles; vivia lá nos mesmos lugares; e, mais do que tudo, a música deles afectou muito a minha vida.
Se era assim como vem no filme? Não, porque a música dos Joy Division era um mistério e Ian Curtis era um mistério (até para os outros músicos dos Joy Division), e o maior mistério de todos foi aquele que os fãs criaram à volta de tudo aquilo. Essas grandezas ficam. São intangíveis.
O filme de Anton Corbijn apenas trata de um desses mistérios, o de Ian Curtis. E fá-lo da maneira mais superficial, mostrando a domesticidade, o quotidiano, o documentado. Está certo. Esta modéstia é a melhor coisa do filme. Não só porque a recriação está bem feita, sem sacrifício da banalidade, mas porque deixa intacta a grandeza cada vez mais misteriosa da música.
Mas então era assim como vem no filme? Não, porque essa veracidade foi sujeita à mentira do preto e branco - para mais, bem filmada. O estilo fotográfico do próprio Corbijn alastra pelas pessoas e pelas paisagens, perpetuando-se escusadamente. Melhor teria sido mostrar as cores verdadeiras daqueles lugares e daqueles tempos, muito mais fascinantes e elucidativos. Manchester não é da cor das capas dos Joy Division.
Ian Curtis era um grande cantor, porque era capaz de encontrar a verdade dentro dele e cantá-la. Era incapaz de fugir dela; não conseguia cantar a fingir. Muitos bons e maus cantores dão tudo o que têm. O que fazia Ian Curtis é muito mais raro. Dava tudo o que tinha - mais tudo o que era.
A arte é mentirosa, e ai do artista incapaz de mentir. Foi essa a tragédia de Ian Curtis. Narrar essa incapacidade é um dos méritos do filme de Anton Corbijn. O problema não eram as duas mulheres de quem gostava: era a sua terrível honestidade. Tinha nojo de ser dúplice; tinha nojo de ser injusto; tinha nojo de não ser capaz de corrigir o mal que estava a fazer. Foi esse nojo - de continuar a conseguir viver na mentira - que o levou a assassinar-se.
A mania da verdade de Ian Curtis era uma loucura. A exposição emocional que alcançavam as interpretações dele, tornando-as avassaladoras, vem do mesmo excesso moral, da mesma falta de fronteiras entre a alma e o comportamento; entre a introspecção e a sua exibição compulsiva, como entrega e como punição.
A prova final da força da mentira - da ficção, do cinema, da interpretação - está na maneira como Control conseguiu recriar o que se diria impossível: as actuações musicais dos Joy Division.
A verosimilhança e a eficácia de Control, com o equilíbrio de todos os seus pequenos fingimentos acumulados, é precisamente o contrário da maneira de ser de Ian Curtis. Sam Riley é tão grande actor que chega a confundir-se com quem está a interpretar: fingindo ser quem não conseguia fingir a mínima coisa.
No entanto, como em todas as recriações, há sempre o desconforto do parasitismo. Control quer ser um filme e um documentário ao mesmo tempo. É decoroso e respeitador, mas, por outro lado, fugindo à grandiosidade e ao romantismo próprios da música dos Joy Division, também é tímido e diplomático de mais.
O esquema do «eram quatro rapazes normais, com vidas normalíssimas», funciona bem, mas é uma história como qualquer outra. A história dos dois amores é bem contada, mas acaba por ser um pormenor da verdadeira história, que é a relação de Ian Curtis com ele próprio e com a verdade.
O problema é que Control quer escapar a essa condição através do seu imenso cuidado recreativo, procurando esconder os seus andaimes melodramáticos atrás do paredão de tijolo da sua verosimilhança.
Não consegue. Ou sou eu que não consigo. Acredito até que seja melhor sentir e gostar pouco da música dos Joy Division para poder ver este filme como o filme que, se calhar, é.
Ainda acrescento mais uns comentários de MEC após a publicação do texto:
na pressa e no constrangimento de escrever aquelas linhas, ficou de fora aquilo que mais me incomodou: um aspecto museológico, como quem quer guardar o que nunca se poderá preservar - ou sequer se percebeu enquanto existia. Como aquelas figuras de cera a fazer de padeiros no museu de Ovar: tudo é correcto; os trajos; a mobília; até a luz. Mas não têm vida. O filme de Anton Corbijn é muito bem feito mas é feito para quê? Para agradar - sobretudo para agradar. A quem soubesse/gostasse dos Joy Division ou não. Não é um objectivo próprio da história que conta. É um filme agradável - e isso não está certo.
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