12 agosto 2008

A Europa está a fechar as portas aos Músicos

Muito interessante artigo publicado hoje no Público sobre um problema que cada vez se torna mais grave e revoltante. Em Sines os organizadores já se tinham manifestado com um cartaz na entrada do Castelo, hoje o Público dá uma ajuda a esclarecer o que se passa:

Os africanos e os asiáticos são os que somam mais recusas de vistos para actuar na Europa. Sobretudo se são homens e jovens. As negas acontecem quando já foram compradas passagens áreas e feitas reservas em hotéis. Promotores de festivais começam a desistir de ir buscar músicos longe. Poderá estar em causa uma convenção da UNESCO aprovada pela UE

Festivais sem cabeças de cartaz, confusão instalada, agências à beira da falência. São cada vez mais os músicos estrangeiros, sobretudo de África e da Ásia, que estão a ser impedidos de entrar na Europa. As garantias dadas pelos seus produtores na União Europeia e pelos promotores dos festivais onde deviam participar não são suficientes. E eles são barrados algures no trajecto. Começará a Europa a "baixar os braços" e a desistir de quem vem de longe?

"Com os artistas africanos a questão é o receio da imigração ilegal; com os árabes o terrorismo", resume Vasco Sacramento, promotor do Festival Med de Loulé, que este ano viu ficarem pelo caminho dois dos seus cabeças de cartaz devido à recusa ou a dificuldades em obter vistos.
O mesmo aconteceu no Serralves em Festa e no Festival Músicas do Mundo, em Sines. No conjunto, em Junho e Julho foram afectados quatro concertos envolvendo três bandas: os congoleses Konono n.º1; os marroquinos Master Musicians of Jajouka e os paquistaneses Asif Ali Khan & Party.
Em escala maior, a situação tem vindo a repetir-se por toda a União Europeia. Nos últimos meses, pelas mesmas razões, não puderam actuar na Europa, entre vários outros, os Kasai Allstars, do Congo, Pierre Akendengué, do Gabão, Ismael Lo, do Senegal, Les Amazones, da Guiné.

Os Master Musicians são os herdeiros de um tradição musical que tem passado de pais para filhos desde há mais de mil anos. São do clã Attar, que fundou a aldeia de Jajouka nas montanhas do Rif. Não são músicos profissionais, pelo menos segundo os parâmetros ocidentais. Serão antes guardiões de "sons primordiais", como escreveu, sobre eles, o escritor beat William Burroughs. Paul Bowles também se rendeu. No ano passado, os Master Musicians estiveram em Lisboa, no Centro Cultural de Belém, para homenagear o escritor que trocou os EUA e a Europa por Tânger. Há três anos tocaram no festival de Sines.

"Tivemos imensos problemas em obter vistos para eles. Foram obrigados a ir duas sou três vezes ao nosso consulado de Rabat e quando finalmente, já na posse dos vistos, chegaram ao aeroporto de Lisboa, foram detidos pelo Serviço de Estrangeiros durante três horas", conta Carlos Seixas, promotor do festival de Sines.
Jajouka fica a várias centenas de quilómetros de Rabat. Este ano, terá sido acrescentado mais um documento à lista dos exigidos nas duas vezes anteriores. "Quando finalmente se conseguiu marcar uma entrevista no consulado e eles foram lá, pediram-lhes um certificado de actividade profissional passado na área de residência. Demorava dois meses a obter e ia obrigá-los a fazer a mesma viagem mais um par de vezes. Desistiram", conta Vasco Sacramento.
Colapso financeiro
Os efeitos, em cascata, são pesados e perversos. Há agências que apostaram na chamada world music (música do mundo), o sector mais afectado por estas restrições, que estão à beira da falência.

Entre os requisitos obrigatórios para a concessão de vistos figuram actualmente a apresentação das passagens aéreas (que portanto têm de ser adquiridas antes) e das reservas em hotéis. Quando os vistos são recusados, esta despesa redunda automaticamente em prejuízo.
Para circular no espaço Schengen, basta um visto de entrada para um dos países contratantes (quase todos os países europeus; a Grã-Bretanha é uma das excepções). Quando, devido à recusa de um país, se tentam outras porta de entrada, os custos no mínimo duplicam.
Foi o que aconteceu com os Konono n.º1, mais de 25 anos de existência, que misturam uma espécie de trance music local com experimentação electrónica e instrumentos com as mais variadas origens. "Fervilhante", "vulcânica", são alguns dos adjectivos com que a sua música tem sido classificada na Europa, onde têm dois discos de sucesso e várias tournées.
Este Verão, os Konono tinham agendados concertos em cinco países. Em vão. A França, primeiro, e a Suécia depois recusaram-lhes vistos. Só elementos da banda os Konono contam nove. Os Kasai Allstars, também oriundos da República Democrática do Congo, juntam cinco grupos étnicos entre os seus 25 membros.

A belga Divano Production, de Michel Winter, que representa as duas bandas, perdeu cerca de 18 mil euros com o cancelamento das tournées europeias para este Verão e poderá agora fechar portas. "Não é a primeira vez que a Divano é atingida por esta realidade e duvidamos que possamos continuar a nossa actividade, devido a um colapso financeiro", escreveu Winter num e-mail enviado agora aos promotores dos festivais de world music.

Convenção da UNESCO
Com o imponderável como regra há também promotores que, face ao acumular de cancelamentos e prejuízos, começam a optar por "esquecer" os grupos que vivem longe, privilegiando contratos com aqueles que já residem na Europa.
"[Consciente ou inconscientemente] vamos talvez começar a baixar os braços", advertiu Philippe Conrath, director do festival Africolor, em França, durante um encontro sobre esta questão realizado em Maio, em Angoulême, no âmbito de outro dos grandes eventos da música do mundo, o Festival Musiques Métisses.

Conrath: "É um verdadeiro problema, que quero assinalar aqui. A consequência deste entrave à circulação é que não participaremos no esforço de criação que está a ser feitos nesses países." Carlos Seixas, promotor do Festival Músicas do Mundo, de Sines, aponta o dedo: "Estamos no ano escolhido pela União Europeia como o do diálogo intercultural e a situação está cada vez pior."

As atribulações impostas a estes grupos dão conta de uma história de absurdos, burocracias e abusos, que estará a repetir-se pelos consulados dos países europeus e que poderá constituir uma violação à Convenção da UNESCO sobre Diversidade Cultural, aprovada em 2006 pela União Europeia, adverte Ole Reitov, responsável da Freemuse, uma organização internacional contra a censura na música.

Entre os objectivos consagrados na convenção figura "o reforço das indústrias culturais nos países em desenvolvimento através", entre outros meios, da "facilitação de um acesso amplo das suas actividades, bens e serviços culturais ao mercado global e redes internacionais de distribuição".
Nesta convenção defende-se também "a adopção de um tratamento preferencial para os países em desenvolvimento: os países desenvolvidos devem facilitar trocas culturais com os países em desenvolvimento, garantindo, através das redes institucionais e legais apropriadas, um tratamento preferencial aos artistas e outros profissionais da cultura".

Ninguém atende
França e Alemanha, no espaço Schengen, e Reino Unido, fora dele, estão entre os países que mais entraves e dificuldades colocam à emissão de vistos. "Regra geral há muita boa vontade nos consulados portugueses", contrapõe Sacramento. Geralmente não recusam vistos, tentam acolher bem os requerentes. Mas existe uma "enorme dificuldade em falar com eles". Nas horas de expediente, na maior parte das vezes o telefona toca e ninguém atende. "Começamos com meses de antecedência e o resultado nunca é garantido", acrescenta o organizador do Festival de Loulé.

Esta situação agravou-se com os recentes cortes orçamentais e respectiva redução de meios.
"As pessoas dos serviços consulares não têm capacidade de resposta", constata também Sacramento. Uma consequência: quando acaba por existir uma resposta, não chega muitas vezes em "tempo útil". O calvário burocrático está garantido à partida.
No consulado de Portugal em Rabat, em Marrocos, não existe qualquer registo da passagem dos Master Musicians of Jajouka por lá, este ano, transmitiu ao P2 o assessor de imprensa do secretário de Estado das Comunidades.

Mas a primeira reacção dos serviços ao pedido de informação não deixa de ser reveladora. "Relativamente ao referido grupo não é possível efectuar uma consulta ao processo sem que nos sejam fornecidos os seguintes elementos; nome, n.º de passaporte e data de nascimento de cada um dos membros do grupo." Acrescentava-se depois ainda na mesma nota: "Através da consulta efectuada junto dos serviços consulares da embaixada em Rabat fomos informados que o grupo em questão já era conhecido e que em data anterior lhe teriam emitido vistos para actuação no CCB."

Da parte do Ministério dos Negócios Estrangeiros a informação que chega é, por sua vez, a que tem sido repetida pela maioria dos seus congéneres europeus: para conceder um visto de entrada, o país "encontra-se obrigado a exigir os requisitos constantes do acervo de Schengen e que são iguais para todos os casos".
Assinado em 1990, o acordo de Schengen visa a adopção de uma "política comum no que diz respeito à circulação de pessoas [no espaço dos países contratantes] e nomeadamente ao regime de vistos".

Schengen com variações
Vertidas para as legislações nacionais, as exigências para obtenção de vistos para o espaço Schengen são aparentemente uniformes: os vários títulos de entrada são os mesmos, assim como os documentos exigidos para a sua concessão, que podem variar segundo o tipo de visto pretendido, mas não de país para país ou de consulado para consulado do mesmo Estado.
Contudo, a experiência no terreno não tem sido esta, sobretudo nos últimos anos, com o endurecimento das políticas anti-imigração e o reforço das medidas de segurança após os atentados de Nova Iorque, Londres e Madrid.

"O visto Schengen permite a circulação no conjunto dos países europeus. Na prática, no entanto, cada país tem a sua própria política, os seus próprios critérios para a passagem de vistos. As regras são muito diferentes em função dos países", testemunhou, no encontro de Maio em Angoulême, Sophie Guênebaut, directora da rede de músicas do mundo Zone Franche.
O agente francês do maliano Mo DJ, Marc-Antoine Moureau, revelou ao Monde 2 qual a resposta que obteve este ano da vice-cônsul de Bamako: "DJ não é uma profissão! Reformule o seu pedido."

O produtor senegalês Assane Ndoye contou ao mesmo jornal que existem casos onde "as autoridades dizem aos músicos para actuarem perante elas de modo a avaliarem se são mesmo profissionais".
Há cinco anos, um conhecido músico congolês foi condenado em França por ter organizado um rede de "imigração clandestina". Por vezes os artistas integram nas suas comitivas gente que não pensa em regressar. Estatisticamente, estes casos são irrelevantes, mas constituem autênticas achas para a fogueira.

Prazos legais
Carlos Seixas fala de "burocracia e má vontade". Vasco Sacramento de "regras arbitrárias". "Num país um consulado pede-nos certificado de rendimentos, noutros não. Depois o processo vem para consulta para Portugal e congela no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, que não avisa ninguém e nem repara que os espectáculos podem estar marcados para dali a dias", conta o promotor do festival e Loulé. E desabafa: "É muito cansativo."
Numa resposta por escrito às questões do P2, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) remete para o quadro legal existente, lembrando que, por lei, tem um "prazo máximo de 20 dias" para se pronunciar, emitindo parecer, "findo o qual a ausência de emissão corresponde a parecer favorável". Na nota recorda-se que também o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) tem prazos legais para se pronunciar sobre "cada tipo de visto, sob pena de deferimento tácito".
Os vistos concedidos nos consulados e embaixadas são cinco: de escala, trânsito, curta duração, estada temporária e de residência. Estes últimos dois carecem de parecer obrigatório do SEF. Quando negativo, este parecer é vinculativo.

O SEF sublinha, a este respeito, que se "pronuncia unicamente sobre dois parâmetros: análise do risco migratório e razões de segurança interna, não podendo em circunstância alguma pronunciar-se sobre os documentos que devem integrar o procedimento administrativo, tendente à emissão de vistos, cuja competência instrutória pertence em exclusivo ao MNE".

Vistos para artistas

Os vistos de estada temporária para exercício de actividade profissional - geralmente têm a duração do contrato de trabalho - e de residência para exercício de actividade profissional independente são aqueles que, por norma, são concedidos por Portugal aos artistas, informa também o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.
Este ano o Ministério francês dos Negócios Estrangeiros instruiu os seus consulados para "facilitarem" a concessão de vistos aos naturais de África que tivessem uma actividade profissional de carácter artístico, cultural, universitário ou de investigação.

No encontro de Angoulême, um conselheiro daquele ministério explicou que estavam disponíveis para "generalizar a outros públicos, como os artistas, o que foi feito para os empresários", atribuindo também a artistas africanos "vistos de circulação" com um prazo que pode ir de um a cinco anos. Durante o período de vigência, os seus portadores poderão viajar para o espaço Schengen sem passagens por consulados e respectivas burocracias e imprevistos.
Ole Reitov, da Freemuse, tem estado a coligir casos de problemas com vistos. O processo deverá acompanhar uma espécie de "livro branco" com propostas de solução que deverá ser entregue nos próximos meses no Parlamento Europeu. A questão estará também na ordem do dia do fórum cultural da rede Eurocities, que decorrerá em Dortmund, Alemanha, no princípio de Setembro, e na Womex de Sevilha, em Outubro, revelou aquele responsável ao P2.

"Prevejo dificuldades", diz Carlos Seixas sobre uma eventual aplicação de um tratamento diferenciado aos artistas. Primeira dificuldade: como provar que eles são de facto o que dizem ser? Tanto Seixas como Sacramento recordam que muitos dos músicos que participam nos festivais de world music não são artistas profissionais - podem ser pastores, artesãos, agricultores... - e portanto não podem apresentar a certidão de actividade profissional exigida nos processos de atribuição de vistos.

Os serviços "pedem muitas coisas que nos países pobres são difíceis de obter ou que de todo não existem", constata Carlos Seixas. Aos paquistaneses Asif Ali Khan & Party, que no seu país costumam actuar em festas de aldeia e não pensam sequer em passar recibos (que ninguém pede) foram recusados vistos por não terem provas de autonomia financeira. Isto, apesar dos termos de responsabilidade que foram apresentados pelos seus contratadores europeus, que legalmente podem substituir aquela prova.

Vasco Sacramento não enjeita responsabilidades: "A culpa também é nossa, da indústria musical. Há uma certa inércia. Não temos sabido responder às novas exigências de segurança e imigração." Não está optimista: "Tenho alguma dificuldade em ver como isto se vai desembaraçar."

Em Angoulême, o conselheiro do Ministério dos Negócios Estrangeiros francês, Didier le Bret, aponta limites que continuarão a ter efeitos "muito perniciosos". Mesmo que venham a existir vistos especiais, de maior duração, só irão beneficiar aqueles que as normas e a experiência apontam como representando "um risco fraco ou nulo".
"O problema são os jovens artistas", desabafa, subscrevendo o perfil traçado antes por Conrath. Exemplo tipo que mete medo à Europa, segundo Philippe Conrath: "Homem entre os 18 e os 26 anos."

Entre 2010 e 2015, os 24 países que hoje integram o espaço Schengen deverão começar a exigir que os visitantes de outras partes do mundo tenham vistos com os chamados "registos biométricos". A medida, que já se encontra em vigor para entradas no Reino Unido e nos EUA, poderá tornar ainda mais difícil o acesso à Europa.
As impressões digitais são fundamentais nestes registos e, como é óbvio, só poderão ser recolhidas presencialmente. Neste momento, sempre que alguém fora da UE pretender visitar o Reino Unido tem de requerer um visto e fixar nele novas impressões digitais, mesmo que já o tenha feito poucos meses antes.

O processo repete-se assim em cada novo visto, obrigando a deslocações colectivas aos consulados, o que significa muitas vezes ter de viajar para outro país. É o que acontece em muitos países africanos. Um balanço feito recentemente pelo jornal britânico The Independent: no Mali não existe um consulado britânico, por isso sempre que uma banda daquele país é contratada para actuar na Grã-Bretanha tem de voar primeiro para o Senegal. O grupo de jazz Les Amazones, da Guiné, teve este ano de viajar para Freetown, na Serra Leoa, para tentar obter vistos para os 12 elementos da banda. "Antes podíamos enviar apenas uma pessoa com os 12 passaportes. Agora, por causa das impressões digitais, têm de ir todos", queixou-se o produtor. O visto foi-lhes recusado.

Um visto de entrada no espaço Schengen também não garante acesso a território britânico e o Reino Unido não concede vistos a não europeus nos seus consulados da União Europeia. Há por isso quem tenha de se deslocar, por exemplo, de Paris a Dacar, antes de viajar para Londres.

Carlos Seixas, promotor do Festival Músicas do Mundo, em Sines, conta outra experiência que saiu cara. Com visto português obtido no consulado de Pequim, o "pai" do rock chinês, Cui Jian, estava a iniciar a viagem que o traria a este festival quando foi barrado (com o grupo) no check-in da British Airways. O voo para Lisboa fora comprado nesta companhia, mas tinha uma escala em Londres e os músicos chineses não tinham vistos de trânsito e portanto não podiam pisar solo britânico. "Tiveram de comprar novos bilhetes para um voo que fizesse escala num país Schengen."

Mas não é só a Europa que está a colocar problemas de entrada e também não são só os artistas africanos ou asiáticos que têm sofrido com isso. Músicos europeus e canadianos têm sido impedidos de actuar nos Estados Unidos devido à recusa de vistos de entrada. Por ter cadastro, a britânica Amy Winehouse foi um deles.