16 agosto 2008

O Tributo a Isaac Hayes, por Mário Lopes ( jornal Público)

Quando Isaac Hayes morreu a 11 de Agosto, recordámo-nos de Shaft e de Chef, a personagem
de Southpark a que deu voz. Não é mau como iconografia, mas é redutor para quem ajudou a definir a soul de 1960, para quem ofereceu corpo e som a uma revolução musical

Quando tanto há para dizer que não sabemos por onde começar, apelamos ao pragmatismo. Começamos pelo princípio. O princípio, em Isaac Hayes, é 1969. Um título: Hot Buttered Soul. Uma capa: A cabeça rapada, os óculos escuros e, desfocadas, a silhueta dos ombros e as correntes douradas sobre o peito. Quatro canções: Walk On By, Hyperbolicsyllabicsequedalymistic, One Woman e By The Time I Get To Phoenix. Era o seu segundo álbum a solo e, a partir dele, tornou-se impossível ignorá-lo: canções que se esticavam além dos 10 minutos de duração e que eram soul "maximizada" em arranjos intrincados e sumptuosos, cantados por uma voz grave a impor-se com doçura e sensualidade, tocada em piano que soava chamuscado pelo calor do palco e que, no momento seguinte, parecia serenar no calor dos lençóis.
Para o Isaac Hayes que, em 1969, lançou Hot Buttered Soul, marco fundador de uma nova era da música negra americana (seguiram-no rapidamente Marvin Gaye, Curtis Mayfield ou Stevie Wonder, Barry White apresentou-se pouco depois), a carreira começava verdadeiramente ali. O disco galgou os topes, o génio foi celebrado pelos seus pares e a sua imagem tornou-se a da emancipação de uma comunidade em luta pelos direitos civis - as correntes transformadas de símbolo opressor em sinal de poder e orgulho.

Dois anos depois, chegaria a banda sonora de Shaft, filme que é o "pai" da blaxploitation, e Hayes tornava-se, para além de tudo o resto, o homem mais cool do mundo. Se só Marvin Gaye podia cantar um verso como "baby, I'm hot just like an hoven" e sair incólume (fê-lo em Sexual Healing), só Isaac Hayes poderia rodear-se de guitarras wah-wah e um ritmo sulfuroso, perguntar "who's the black private dick that's a sex machine to all the chicks?" e legitimar a canção com um Óscar de Hollywood - só ele, acrescentamos, podia apresentar-se à nação como Black Moses, título de um dos seus álbuns mais emblemáticos, editado em 1971, e não só escapar à heresia como ver confirmada pelo público a justiça do título.
Nos campos de algodão Isaac Hayes morreu esta semana, dia 10 de Agosto. Encontrado inconsciente no chão de sua casa em Memphis, não sobreviveu ao segundo enfarte em dois anos. Para a posteridade, parecem ficar gravadas na cultura popular duas imagens: a propagada por Shaft, filme e música, e a de Chef, o cozinheiro da série Southpark a que deu voz durante nove anos (de 1997 a 2006). Não é mau como quadro iconográfico, mas é redutor. Para perceber a sua verdadeira dimensão, temos que voltar novamente ao início - e o início já não é Hot Buttered Soul, é antes disso.
Isaac Hayes nasceu em Covington, no Tennessee, a 20 de Agosto de 1942. Orfão ainda criança, foi criado pelos avós. Viu-os plantar milho e cuidar de gado em Covington, com eles migrou para Memphis. Foi aí que, quando o avô morreu aos seus 11 anos, se dividiu em mil trabalhos - na colheita de algodão, como moço de recados, lavando pratos em restaurantes. Paralelamente, a música atravessava-se no seu caminho. Como a maioria dos grandes nomes da música negra, começou por cantar na Igreja e tornou-se autodidacta numa série de instrumentos - o piano era o seu preferido. Em 1958, convencem-no a participar num concurso de talentos. Vence com uma canção de Nat King Cole e descobre uma carreira.

Em 1962, entra como pianista de sessão na Stax, a mítica editora onde Hayes se tornaria peça fundamental na definição sonora da soul física e visceral do sul dos Estados Unidos. Começou acompanhando Otis Redding ou Carla Thomas, mas rapidamente revelaria os seus talentos como produtor e compositor. Em parceria com David Porter, amigo de adolescência e rival dos concursos de talentos, formou a mais produtiva equipa de produção da Stax, criando canções como Hold On I'm Coming ou Soul Man, músicas de balanço febril e clássicos absolutos da soul.
Discos e filmes
A estreia, Presenting Isaac Hayes, de 1968, surgiu como bónus oferecido pela editora ao seu talentoso produtor - não lhe viam futuro como artista a solo, o que pareceu confirmar-se nas fracas vendas do álbum, gravado nos intervalos da habitual rotina de estúdio. À segunda oportunidade, contudo, tudo se alterou. Isaac Hayes lançou Hot Buttered Soul e, com ele, uma carreira e uma revolução musical - antevia-se a explosão de criatividade de What's Going On, de Marvin Gaye, ou do álbum homónimo de Curtis Mayfield; não se antevia ainda a estética propagada em tantas capas e telediscos de hip hop por vir (mas, naturalmente, não há coincidências).

Durante a primeira metade da década de 1970, foi omnipresente nas tabelas de vendas. Na segunda metade, prenunciou o disco-sound e adaptou-o depois à sua criatividade. Nos anos 1980, não reparámos tanto na sua música, mas vimo-lo em episódios de Miami Vice ou Soldados da Fortuna - Hayes gostava de representar e, para além das séries e da blaxploitation, fê-lo em filmes tão variados quanto A Louca História de Robin Hood, de Mel Brooks, ou no futurista Johnny Mnemonic, inspirado num conto de William Gibson.

Quando o recuperámos para a consciência colectiva, pela voz de Chef ou pelo remake de Shaft, Isaac Hayes, o Black Moses, o músico que despoletou uma revolução musical e deu corpo a uma revolução sexual, já era mais um par de coisas. Era, por exemplo, Nene Katey Ocansey I, "Rei para o Desenvolvimento" de Ada, no Gana, assim distinguido em 1992 pelo trabalho de filantropia desenvolvido no país.
À data da morte, preparava o seu primeiro álbum em 13 anos, edição que marcaria o regresso à renascida Stax. Crente na reencarnação e cientologista - foi um episódio de Southpark satirizando a religião que o levou a abandonar a série -, afirmava que a vida se faz em ciclos de regressos. Assim, o antigo Black Moses foi coroado rei no Gana. Assim, o velho músico regressava à sua velha editora.
Isaac Hayes morreu aos 65 anos na sua casa em Memphis. No local onde foi construída avistavam-se, há décadas atrás, extensos quilómetros de plantações de algodão. Precisamente aquelas onde trabalhara antes da música se lhe atravessar no caminho.